Quando ouvi pela primeira vez sobre dormir no deserto do Marrocos, confesso que fiquei dividida entre o encantamento e a dúvida. A ideia de estar no meio do nada, longe de tudo que é familiar, parecia poética — mas também um pouco ousada.
Será que valia a pena atravessar horas de estrada, trocar o conforto da cidade por uma tenda, e aceitar o silêncio como companhia?
Mas alguma coisa me dizia que sim. E foi assim que embarquei nessa jornada: sem expectativas grandiosas, mas com uma curiosidade honesta por saber o que aquele lugar poderia revelar.
Não fui buscando luxo, nem aquela versão pasteurizada da aventura. Fui pelo simples: pela pausa, pela presença, por algo que me tirasse do modo automático. E encontrei tudo isso, mas de um jeito que não se descreve em superlativos.
Essa noite no deserto não mudou minha vida — mas mudou o meu tempo.
Fez ele ficar mais lento, mais observador, mais inteiro.
E é isso que quero te contar aqui. Sem exageros, sem misticismo, sem fórmulas. Só o que vi, o que senti e o que talvez você também vá viver se um dia decidir parar — de verdade — no meio do Saara.
Antes da areia: a jornada até o deserto e o que se vive no caminho
Chegar ao Saara não é só sobre estar ali. É sobre tudo o que vem antes também.
Escolhemos fazer o trajeto com um tour privado saindo de Marrakech, em um veículo 4×4 conduzido por um guia local experiente. É uma das formas mais confortáveis e seguras de chegar ao deserto — especialmente se você quer aproveitar o percurso com calma, paradas estratégicas e zero preocupação com estrada, clima ou rota.
Foram cerca de 10 horas até o acampamento no Erg Chebbi, com pausas ao longo do dia para visitar vilarejos berberes, pequenas Kasbahs e pontos de vista naturais que pareciam saídos de um outro tempo. A estrada corta o Alto Atlas, e cada curva revela uma mudança de cenário: montanhas cobertas de neve, campos de tamareiras, casas de barro vermelho, vales profundos.
É uma travessia longa, sim — mas longe de ser entediante. Ao contrário: o corpo vai desacelerando junto com a paisagem. O celular perde sinal, a agenda desaparece, e o olhar começa a se fixar em detalhes que normalmente passariam batido.
No trecho final, já perto de Merzouga, o asfalto cede lugar a caminhos de areia firme. O carro segue por uma rota mais remota, onde a vegetação quase desaparece e o vento se torna presença constante. As dunas não surgem de forma abrupta. Elas aparecem primeiro como sombras suaves no horizonte, depois se erguem em formas douradas que parecem se mover com a luz.
Quando finalmente descemos do carro, o silêncio era quase total. Nada de som urbano, nenhuma notificação no celular. Só a sensação de estar chegando em um lugar que não exige reação imediata — exige escuta, presença, tempo.
Você não chega ao deserto com pressa. Chega com o corpo mais devagar, a mente menos barulhenta e uma intuição discreta de que algo muito simples — e talvez muito necessário — está prestes a acontecer.
A rotina de uma noite no deserto: entre tradição, estrutura e um céu que hipnotiza
Minha experiência foi no Erg Chebbi, uma das regiões mais cênicas do Saara marroquino, perto da vila de Merzouga. Essa área é conhecida por unir acessibilidade com um cenário quase mítico: dunas que chegam a 150 metros de altura, com cores que mudam a cada hora do dia — e um silêncio que não parece deste século.
Apesar da fama, Erg Chebbi ainda preserva o espírito nômade, especialmente nos acampamentos geridos por famílias berberes locais. São pessoas que nasceram ali, conhecem cada curva do deserto e hoje trabalham com turismo de forma séria, respeitando tradições e operando com estrutura real — não há improviso. Essas famílias costumam passar parte do ano morando nas vilas próximas e parte no deserto, durante a temporada de alta demanda.
O acampamento em que fiquei era o que chamam de “intermediário”:
mais conforto que um bivouac tradicional, menos sofisticação que um glamping. As tendas tinham base firme, estrutura de madeira, tecidos grossos e resistentes ao vento. Camas com lençóis limpos, cobertas grossas dobradas nos pés, iluminação solar suave, banheiros privativos com vaso sanitário, pia com água corrente e um sistema básico de aquecimento para dias mais frios.
Chegamos no fim da tarde, a tempo de subir uma duna e observar o pôr do sol. Lá de cima, o vento muda o tom da areia a cada minuto. Fiquei em silêncio — não por reverência, mas porque o deserto não dá espaço pra muito barulho interior.
O jantar, servido ao ar livre, começou sob um céu já cheio de estrelas. A cozinha, montada atrás das tendas, é rústica e improvisada com precisão. Nada ali é gourmet, mas tudo tem identidade. Comemos tajine de cordeiro com damascos, cuscuz com legumes, sopa harira, pães achatados assados em pedra quente e o clássico chá de menta adocicado. Tudo preparado e servido por homens e mulheres da equipe, com um senso de cuidado que vai além do serviço. É cultura sendo passada pela comida.
Ali não se apressa. A refeição acontece devagar, e termina com chá quente sendo oferecido mais de uma vez — não por insistência, mas como símbolo de continuidade.
Depois do jantar, a fogueira é acesa no centro do acampamento. E o que acontece ali não é um show. É partilha. Os anfitriões pegam tambores, flautas tradicionais (como a ney) e começam a tocar. As músicas são repetitivas, hipnóticas, e funcionam quase como um tipo de meditação coletiva. Entre uma música e outra, surgem histórias. Algumas sobre o deserto: sobre rotas antigas de caravanas, sobre tempestades de areia repentinas, sobre famílias que andavam meses entre o Saara e Timbuktu.
O francês misturado ao árabe torna tudo ainda mais real. E mesmo sem entender cada palavra, o corpo entende o ritmo. O rosto deles conta o que a fala não traduz.
Esse não é um momento de performance. É de escuta.
Quem quer dançar, dança. Quem quer só observar, observa.
Mas é difícil sair dali sem sentir que, mesmo por algumas horas, você foi parte da paisagem.
Quando a fogueira começa a apagar e o grupo se dispersa, o céu parece mais cheio do que antes. E a noite ainda está só começando.
O céu e o sono: o que acontece quando tudo desacelera
Como é dormir no meio do Saara?
O silêncio da noite no deserto não é vazio. Ele é espesso.
As tendas são mais que abrigo — são um lembrete de que conforto não precisa de excesso. A minha tinha forro de tecido duplo, tapetes no chão, colchão de densidade média, cobertores pesados e espaço suficiente pra deixar a mochila ao lado da cama. Uma pequena lâmpada solar pendia do teto. Ao fechar a entrada da tenda, você sente o ar mais frio se acumulando do lado de fora — e isso já basta pra entender que a noite ali vai pedir presença.
As temperaturas entre novembro e março podem cair para 5°C ou menos, dependendo da noite. Em outras épocas do ano, como abril e outubro, o frio é mais suave, mas ainda presente. Por isso, roupas térmicas, meias grossas e até um gorro leve fazem diferença real na experiência.
Importante: apesar da aparência simples, os acampamentos seguem normas locais de segurança e operação, e os responsáveis passam por treinamentos regulares. O turismo no deserto é uma das principais fontes de renda da região — e por isso, há fiscalização e exigências que garantem não só a vivência do viajante, mas o respeito ao ecossistema local.
Mesmo assim, o sono ali é diferente. Você não desliga — desacelera.
Dorme ao som de pequenos ruídos: o vento movimentando o tecido da tenda, um camelo batendo passo mais adiante, talvez a madeira que ainda estala sob a última brasa.
A Via Láctea aparece nítida, como se fosse uma faixa pintada à mão.
Se você acordar no meio da noite, vai ver que o céu mudou. As constelações se moveram. Não porque você não prestou atenção — mas porque o tempo continuou, mesmo no silêncio.
Não se trata de um descanso profundo como em um hotel.
É outro tipo de descanso — mais atento, mais limpo, mais raro.
O amanhecer no deserto: luz, silêncio e café quente
O nascer do sol no Saara não tem espetáculo. Tem tempo certo.
Por volta das 6h, o céu começa a clarear. Primeiro, um azul escuro acinzentado. Depois, tons de rosa, amarelo queimado, dourado. As dunas pegam essa luz de um jeito diferente a cada minuto. O silêncio da noite vira uma brisa morna. A areia ainda guarda o frio da madrugada, mas o calor já começa a subir do chão.
O café da manhã é simples e funcional: chá de menta, café preto, pães, azeite, mel, ovos cozidos. Não tem buffet, não tem pressa. Só o essencial. E mesmo isso parece mais intenso ali.
Fiquei sentada na beira de uma duna com a xícara quente na mão. Nada acontecendo, e ao mesmo tempo tudo. O mundo parecia suspenso por um instante.
Você não sai dali com alguma grande resposta.
Sai com uma lembrança precisa — daquelas que o corpo inteiro guarda, não só a memória.
O que essa noite no deserto deixa com você
Passar uma noite no Saara não é sobre se isolar do mundo. É sobre se aproximar das coisas que normalmente passam despercebidas: o silêncio, o frio que chega devagar, o som do vento, a presença de quem está por perto.
A experiência é simples, mas não superficial. Tem conforto, sim — mas também tem desconforto leve, que serve pra lembrar que a gente não precisa estar o tempo todo no controle. Tem beleza, mas sem moldura. E tem história: na forma como a comida é feita, como a música é compartilhada, como os anfitriões falam do lugar com um tipo de orgulho que vem de quem conhece bem cada curva da areia.
Você dorme com o corpo um pouco cansado, mas a cabeça mais clara.
E acorda com aquela sensação de que algo ali valeu a pena — mesmo que você ainda não consiga explicar exatamente o quê.
Não é uma experiência pra todo mundo. Mas talvez seja pra quem sente que precisa, de vez em quando, sair um pouco de si mesma e observar o mundo com menos barulho.
Se esse for o seu momento, o deserto espera.