Essa foi uma daquelas viagens que nascem de um desejo compartilhado. Eu e mais algumas amigas — todas em fases diferentes da vida, mas com a mesma vontade de respirar fundo e viver algo fora do comum. Foi assim que surgiu a ideia de fazer uma experiência do Holi na Índia, não como espectadoras, mas como parte da festa.
A Índia já era um sonho antigo pra cada uma de nós, e quando percebemos que o Holi cairia bem no meio das nossas datas possíveis, ficou claro: era agora.
Não queríamos apenas ver o festival. Queríamos nos permitir estar ali, misturadas nas cores, nos cheiros, na fé e na confusão bonita que o Holi carrega. A decisão foi simples: começar pelo lugar onde ele nasceu.
Mathura, Vrindavan, Gokul e Barsana nos acolheram com uma intensidade que nenhuma de nós esperava — e talvez por isso tenha sido tão marcante. Entre rituais que pareciam de outro tempo e risadas jogadas no meio da multidão, fomos atravessadas por algo difícil de explicar.
Depois, com a alma cheia e o corpo cansado, fechamos esse ciclo em Jaipur. Participamos de uma última celebração mais tranquila, organizada, mas com o mesmo espírito de entrega. Foi ali que percebemos o quanto essa viagem tinha nos mudado — e o quanto tínhamos vivido, de verdade, juntas.
Este não é um relato da viagem à Índia como um todo. Aqui, o que a gente quer compartilhar é só uma parte dela — a experiência de viver o Holi, por dentro, com presença, cor e coração aberto.
O que o Holi realmente celebra? Coisas que a gente aprendeu vivendo por dentro
A primeira coisa que a gente percebe é que o Holi não é só uma festa alegre e colorida, como a maioria dos guias tenta resumir. Ele é parte do ritmo do ano, da religiosidade, da vida coletiva de quem vive ali. É o tipo de coisa que só dá pra entender mesmo quando você sente a cidade se preparando, quando vê o cheiro do incenso se misturar com o pó colorido no ar, quando escuta um senhor no mercado explicando por que o rosa precisa ser mais vivo que o verde esse ano.
Entre fé, mitos e recomeços
O Holi marca o fim do inverno e a chegada da primavera, mas isso é só a camada mais superficial. Por baixo dela, o que se vê é um rito sobre renovação — das estações, das relações, do próprio corpo. As histórias que sustentam o festival estão ligadas a Krishna e Radha, que são figuras centrais na devoção de quem vive em Mathura e Vrindavan.
Krishna, com sua pele escura e seu jeito travesso, dizia se sentir diferente de Radha, que era clara. Ao pintar o rosto dela com cor, criou um gesto simbólico: quando todo mundo está coberto de cor, ninguém é diferente. Essa ideia é repetida, de forma simples e profunda, por quem vive o Holi como parte do seu calendário espiritual. Cobrir alguém com cor é um convite à igualdade, à brincadeira, mas também ao encontro.
A noite em que se queima o que já não serve
Antes do dia de Holi, acontece o Holika Dahan, a queima de uma grande fogueira no centro das vilas e cidades. Ela representa o fim de um ciclo — um encerramento necessário. A história por trás envolve uma mulher chamada Holika e seu sobrinho devoto, Prahlad. Ela tentou queimá-lo, mas acabou destruída pelo próprio fogo. Ele sobreviveu.
A história tem muitos significados possíveis, mas o que vimos foi algo mais direto: é uma noite em que se olha pro que precisa ser deixado pra trás. As pessoas acendem velas, rezam, colocam flores e cantam. É uma celebração coletiva de limpeza — não literal, mas simbólica.
E quando a cor deixa de ser adorno e vira linguagem
No dia seguinte, o que acontece nas ruas é difícil de explicar. Não é só jogar pó nas pessoas. É mais como um ritual de presença. Os pós, que lá são chamados de gulal, não são todos industrializados. Muita gente ainda faz o próprio em casa, com pétalas secas, raízes trituradas e ingredientes que vêm da tradição ayurvédica.
Cada tom carrega um desejo. Não uma “mensagem”, como se fosse um código exato, mas um gesto que quer dizer algo. Amor, bênção, purificação, alegria. A cor vai pro rosto, pro cabelo, pra palma da mão, pra roupa. E, de algum jeito, ela entra também pra dentro da pele.
O que a gente entendeu ali foi que o Holi é, acima de tudo, uma linguagem que não precisa ser traduzida. E talvez seja por isso que ele seja tão difícil de explicar quando você volta pra casa. Porque ele não foi feito pra ser contado. Ele foi feito pra ser vivido.
Quando a cor virou presença
Chegar a Mathura nos dias que antecedem o Holi é como entrar num estado de suspensão. A cidade ainda não começou a festa oficialmente, mas tudo nela já parece se preparar para isso. É como se o ar tivesse um peso diferente — mais denso, mais vivo.
A gente ainda não tinha sido tocada por nenhuma cor, mas já sentia que estava dentro. A música nos alto-falantes, os pós empilhados nas barracas, as guirlandas de flores frescas penduradas nos portões dos templos. Tudo já dizia: se você veio até aqui, é porque também está disposta a se transformar.
Quando ser tocada é convite, não invasão
Nos primeiros contatos com a celebração, o que mais chamou atenção não foi o barulho, mas a delicadeza. Diferente do que se imagina sobre o Holi — principalmente pra quem vê só as imagens explosivas — o início é quase suave. Em vez de jogarem pó de longe, muita gente se aproxima e colore o rosto do outro com os próprios dedos, pintando a bochecha, a testa, o nariz. É como se estivessem dizendo: “você agora faz parte disso”.
Uma mulher mais velha encostou os dedos tingidos no rosto de uma de nós, sem dizer uma palavra. Só sorriu. E ali a gente entendeu: a cor não é um ataque. É um gesto de boas-vindas. Uma forma de igualar sem precisar explicar.
Talvez por isso essa experiência do Holi na Índia tenha nos atravessado tanto. Porque em vez de ser sobre festa, foi sobre relação. Sobre ser tocada de verdade, com intenção e respeito.
A cidade como corpo em movimento
Mathura não para nessa época do ano. Mas também não exige pressa. Cada rua tem algo acontecendo — uma oração, um grupo de crianças ensaiando alguma dança, um senhor sentado vendendo guirlandas de jasmim. A cidade pulsa, mas de um jeito quase coreografado.
A gente se deixou levar. Não tentamos entender tudo, nem precisávamos. Foi mais sobre estar ali do que sobre saber o que fazer. E quanto mais soltávamos o controle, mais o corpo entendia o ritmo do lugar.
O Holi ali é isso: uma presença coletiva que te engole aos poucos. E mesmo quando você acha que ainda está só olhando, já faz parte.
Entre flores, doces e bastões: os rituais que nos atravessaram
Antes de irmos, a gente achava que Holi era uma coisa só. Aquela festa colorida, com todo mundo se jogando tinta no rosto, meio eufórico, meio feliz demais. Mas quando começamos a pesquisar — e depois, quando chegamos lá — percebemos que o Holi real, o que pulsa nas vilas onde Krishna viveu, tem muitas camadas. E cada lugar celebra de um jeito diferente. Às vezes brincando, às vezes cantando, às vezes em silêncio.
Barsana – onde o riso tem história, e os doces viram oferenda
A primeira coisa que vimos foi o Laddu Holi, no templo Shri Radha Rani. E eu juro, não imaginava que seria tão simbólico ver um monte de gente jogando docinhos uns nos outros como se estivessem compartilhando lembranças. Mas não era brincadeira gratuita. Os laddus ali têm função. Eles são prasad — comida sagrada — e jogar um no outro é mais ou menos como dizer: “eu te vejo, e te abençoo com doçura.”
A praça estava cheia, e ainda assim havia leveza. Uma energia de infância misturada com fé. As mulheres riam com um tipo de liberdade que a gente não vê em todos os lugares da Índia. Tinha criança, tinha anciã, tinha estrangeira no meio, e ninguém parecia fora do lugar.
Mas no Lathmar Holi, no dia seguinte, o clima mudou. Ainda era festa, mas com outra força. As mulheres de Barsana assumem o centro da cena — literalmente. Bastões na mão, elas encenam o momento em que Radha e suas amigas revidam as provocações de Krishna. Mas não é só uma peça. É um tipo de memória coletiva. É como se elas estivessem dizendo: “aqui, a gente sabe rir da autoridade — e sabe quando é hora de ser levada a sério.”
O que me marcou ali não foi o impacto dos bastões, mas a postura das mulheres. Elas sabiam que estavam sendo observadas. Mas não estavam ali pra agradar ninguém. O riso era delas. A força, também. Nenhuma de nós conseguia parar de olhar. Tinha algo muito ancestral acontecendo ali, e talvez por isso a gente ficou tão quieta.
Nandgaon – o espelho que responde, mas sem palavras
Em Nandgaon, o mesmo ritual se repete, só que ao contrário. Agora são os homens que esperam, e as mulheres que invadem. E esse movimento entre vilas — um provoca, o outro responde — tem mais poesia do que parece. A gente começou a entender que Holi, aqui, não é sobre revanche. É sobre conversa. Sobre presença.
No templo Nand Bhawan, as ruas são estreitas e tudo parece mais íntimo. Os moradores se olham nos olhos. Quando você está ali, ninguém te ignora, mas também ninguém te coloca no centro. Você vira parte do cenário sem precisar pedir licença.
As cores voavam, sim. Mas o que ficou mesmo foi a troca. Um homem passou por mim, pintou minha bochecha com o dedo e sorriu. Não pediu nada. Não falou nada. Só seguiu. Foi simples, e bonito. Me senti incluída de um jeito que não sei explicar com palavras — e talvez nem precise.
Gokul – onde a pausa é mais forte que a festa
Gokul foi o lugar onde o Holi nos deu espaço pra respirar. O templo Gokul Nath Ji tem uma energia mais devocional, mais baixa, mais interior. Ali não se grita. Se canta. Não se joga. Se oferece.
As crianças estavam por toda parte, carregando tigelas pequenas com pó feito em casa — dava pra sentir que não era de mercado. O cheiro era de cúrcuma e rosa seca. Tocavam uns aos outros com os dedos, com um cuidado que me desmontou. Ninguém ali queria mostrar nada pra ninguém. Era só gente sendo gente. Cada um no seu ritmo.
A gente passou um bom tempo sentadas perto do portão do templo, só observando. Foi um dos momentos mais silenciosos e mais bonitos da viagem.
Vrindavan – onde a cor desce do alto e não precisa dizer nada
No templo Banke Bihari, o Holi das flores parece algo montado pra impressionar. Mas o que acontece ali é puro caos e beleza. Não dá pra ver direito, nem andar, nem sair do lugar. A multidão é um corpo só. E do alto, vêm as pétalas. Rosa, laranja, amarelo. Um cheiro que mistura tudo. Um som que preenche.
A gente não conseguia se mexer, mas também não queria. Estar ali era suficiente. Era como se o templo respirasse. Cada canto, cada grito, cada flor lançada parecia parte de uma coreografia invisível.
Depois, em outro templo, no Rangbhari Ekadashi, a gente viu outro lado do Holi. Mais silencioso, mais ritualístico. Não se joga nada. As mãos se unem, os olhos fecham, as cores são internas. A sensação é que você também precisa ficar quieta. Não pra rezar como eles, mas pra escutar o que está acontecendo ali — dentro e fora.
Em Jaipur, a despedida foi mais pra dentro que pra fora
Depois de tudo o que vivemos — os cantos, as flores, os bastões, os olhos que nos atravessaram sem dizer nada — a gente não sabia direito como terminar. Não sabíamos, também, se precisava de um “fim”. Mas sabíamos que precisávamos de um respiro. Um último gesto. Algo que fosse mais sobre cuidar do que sobre continuar.
Foi por isso que escolhemos passar por Jaipur. Não pra ver mais, mas pra olhar pra dentro.
Ali, numa celebração mais tranquila, com roupas brancas, pós perfumados e música baixa, a gente teve pela primeira vez a chance de parar. De se ver. De rir de leve, sem pressa. Era uma festa, sim. Mas era mais uma espécie de rito de despedida entre a gente.
Foi diferente das vilas. Sem multidão, sem poeira, sem rituais ancestrais. E talvez por isso mesmo tenha sido importante. A gente precisava dessa pausa pra entender que o Holi já não estava mais acontecendo do lado de fora.
Ele já tinha entrado.
Estava no jeito de caminhar mais devagar. Na maneira como a gente se olhava sem precisar explicar. Em como o corpo descansava, mas não queria ir embora ainda.
Naquela última celebração, não nos sentimos turistas. Nem devotas. Nem observadoras. Nos sentimos mulheres que viveram algo profundo — e que agora estavam voltando, sem pressa, com cor até nos silêncios.
O lado que quase ninguém mostra — mas que a gente viveu
Nem tudo no Holi é feito de cor bonita e riso leve.
Ele pode ser um convite à entrega, mas também exige presença, atenção e alguns cuidados que a maioria dos blogs ignora.
Em cidades grandes, a festa pode tomar outro rumo. O consumo de bhang, aquela bebida feita com leite e cannabis, é comum — principalmente em contextos religiosos ligados a Shiva. Mas fora desses espaços, ele também aparece nas ruas, em meio à multidão. E com ele, às vezes, vem o toque sem aviso, a brincadeira que passa do ponto, o excesso disfarçado de euforia.
Foi por isso que decidimos ficar no norte. Em Mathura, Vrindavan, Gokul, Barsana.
Ali, o Holi é mais ritual que festa. Ainda intenso, mas com outro tipo de respeito. Um silêncio no fundo da multidão. Um cuidado entre as pessoas. Um ritmo mais devocional do que turístico.
Mesmo assim, a gente foi com atenção.
Como mulheres, organizadas, sempre juntas. Observando o entorno, sentindo o clima, escolhendo os espaços com carinho. E isso não nos limitou. Pelo contrário: nos deu liberdade pra estar presentes sem medo.
E aí tem aquelas coisas que ninguém te conta, mas que fazem diferença.
Tipo passar óleo de coco antes de sair — porque sim, o pó gruda mesmo. Pele, cabelo, roupa, unha. E não sai fácil.
Ou escolher bem o sapato — porque o chão vira uma mistura de tinta com água que escorrega como sabão.
Ou saber a hora de recuar — como aconteceu num templo onde o olhar das pessoas nos avisou, sem palavras, que aquele não era o nosso lugar. A gente respeitou. Afastou. E seguiu.
Teve também o toque leve que virou desconforto. E o toque respeitoso que emocionou.
Teve a roupa manchada que virou memória.
Teve o “não” dito com firmeza — e respeitado.
Teve o cuidado entre nós — e isso foi o mais bonito.
O Holi é isso também: mistura de intensidade e instinto.
De festa e filtro. De entrega e escolha.
E saber de tudo isso antes não tira a magia.
Só te dá mais espaço pra vivê-la com consciência — e com verdade.
O que o Holi deixou em nós
A gente não voltou da Índia com respostas prontas. Nem com dicas infalíveis. Voltamos com uma bagagem que pesa pouco na mão, mas muito no peito.
O Holi ficou, mesmo depois que a gente lavou as roupas. Ficou nos detalhes que não cabem em post nenhum. No cheiro que ainda parece estar em alguma peça da mala. Na lembrança de uma senhora que sorriu antes de tocar nosso rosto com o dedo tingido de laranja. No cansaço bom de ter estado inteira em todos os dias.
O que aprendemos ali não foi sobre um festival. Foi sobre um ritmo. Um jeito de viver com menos filtro, mais entrega. De ouvir com o corpo. De rir sem pedir licença. E de respeitar o espaço do outro — mesmo quando ele vem coberto de cor.
A gente não foi pra “fazer o Holi”. A gente foi pra viver, do jeito que desse. E deu. Com tudo. Com excesso, com silêncio, com alegria e desconforto. Foi bonito, foi forte, e foi real.
E se hoje alguém me pergunta como é viver o Holi na Índia, eu não sei responder com precisão. Mas sei dizer: se você for, vá com presença. Vá com cuidado. E vá aberta. Porque não tem como sair igual.
Obrigada por estar aqui.
Te encontro no próximo destino.
Com mais cor, mais chão, e sempre mais histórias pra dividir.