O sabor da pausa: cozinhar na Toscana foi minha forma de estar presente

Tirei férias na Itália sem grandes planos além de descansar. Florença era uma certeza — a cidade me chamava fazia tempo. Eu queria caminhar sem pressa, comer bem, sentir o tempo desacelerar um pouco entre uma taça de vinho e uma colher de molho.

Foi então que, pesquisando por experiências diferentes na região, encontrei uma proposta que me fez parar: passar uma semana cozinhando em uma vila no coração da Toscana. Nada de hotel, nada de passeio corrido. Era uma imersão. Pão, vinho, massa, silêncio, azeite. Tudo feito devagar. Com as mãos.

Mas antes de me entregar completamente àquela vivência, fiz algo quase ritualístico. Fui até uma cidadezinha para provar o melhor pecorino da minha vida. Depois, a outra, onde um sorvete artesão me mostrou o que era um verdadeiro gelato. E em Florença, comi um prato tão simples quanto inesquecível — e ali eu soube: o sabor seria meu caminho.

Foi assim, entre pequenas descobertas e bocados lentos, que comecei a me preparar — sem saber — para a experiência que mudaria minha relação com a comida. E comigo mesma.

A preparação: os sabores que abriram o caminho

Antes de me perder entre panelas e receitas em uma vila toscana, experimentei alguns sabores que, sem querer, começaram a moldar minha forma de estar à mesa.

Florença, San Gimignano e Pienza não foram apenas paradas no caminho — foram parte dele. Em cada uma, vivi uma experiência que me conectou com a comida de um jeito novo. Sem roteiro, sem pressa. Só atenção ao que estava no prato.

Sabores de Florença: do sofisticado ao essencial

Florença me recebeu com sabores em todas as esquinas. E não falo só de bons restaurantes — falo de um certo cuidado que a cidade tem com o que se come. Uma naturalidade em servir bem, em entregar o que é simples, mas feito com precisão.

Uma das experiências mais marcantes foi em um restaurante premiado, com estrela Michelin e vista para o Arno. O atendimento era calmo, atento, sem cerimônias. Optei pelo menu vegetariano — não por escolha restritiva, mas porque o cardápio me conquistou antes mesmo da primeira garfada.

Começou com vegetais preparados de formas diferentes: crus, cozidos, acompanhados por coulis de ervas, melaço de figo e um sorvete de romã que dava um contraste inesperado. Um prato que parecia leve, mas dizia muita coisa.

Depois veio o risoto: limão, mozzarella, alcaparras. Cremosidade e acidez bem medidas, sem querer impressionar — só entregar sabor de verdade. O prato seguinte, uma combinação de massas com cogumelos, grão-de-bico, alho negro e trufa, era puro conforto. Terroso, profundo. Dava vontade de comer devagar.

O timballo de vegetais com compota de pimentão veio em seguida: crocante por fora, macio por dentro. Um prato silencioso, que não pedia atenção — ele pegava a sua. A sobremesa fechou com um babà aromático, servido com calda de alchermes, chocolate amargo e sorvete de baunilha. Doce na medida, textura perfeita. Final limpo, direto.

Foi uma refeição que me lembrou que a elegância da comida está no detalhe, não no excesso.

Mas Florença não me entregou só alta gastronomia.

No Mercato Centrale, encontrei outra Itália — mais barulhenta, mais viva, mais prática. Comi de pé, com a bandeja na mão, dividindo espaço com gente do mundo todo.

Uma massa fresca com pesto me fez parar. O molho denso, aromático, feito ali, com manjericão de verdade, azeite de verdade. Queijo ralado grosso, sem medo. Depois, uma bruschetta com tomate e pão tostado, crocante nas bordas, ainda úmido no centro, com um fio de azeite que pingava no prato. Comer ali era isso: sabor direto ao ponto.

Fechei com um cannoli de ricota com frutas cristalizadas. Crocante por fora, denso por dentro. Uma sobremesa simples, mas com aquela assinatura de quem sabe o que está fazendo.

No meio das andanças, encontrei uma trattoria pequena, com cara de que parou no tempo. Sentei por instinto. Pedi uma pappa al pomodoro — e fui feliz. Tomate, pão, alho, manjericão. Textura cremosa, quase um abraço quente. Acompanhado de uma taça de Chianti que casava perfeitamente.

Foi a refeição mais simples da viagem. Talvez por isso mesmo, uma das melhores.

Florença me preparou sem querer. Cada prato, de um jeito diferente, me colocou no clima do que viria depois. Não foi sobre comer bem — foi sobre entender melhor o que significa comer com intenção. E isso fez toda a diferença.

San Gimignano: onde o gelato virou experiência

Se eu tava falando de experiências, não tinha como deixar essa de fora. Em San Gimignano, além de andar pelas ruas medievais com aquela sensação de ter voltado no tempo, vivi uma das coisas mais gostosas — literalmente — dessa viagem: fazer o meu próprio gelato.

Cheguei ali com a ideia de provar um sorvete premiado. Mas acabei colocando touca, avental e mão na massa (ou melhor, no leite, nas frutas, no açúcar). Fizemos um gelato de fiordilatte, o mais simples e o mais difícil. Leite, açúcar, nada pra disfarçar — e por isso mesmo, tudo precisava estar no ponto certo. Temperatura, tempo de batida, ar incorporado… e no fim, aquela textura cremosa que escorre devagar da colher.

Depois de prontos, claro: a hora de provar. E sim, o que a gente faz com as próprias mãos tem outro sabor. Mas, amiga, entre nós? Tive que experimentar os que já são sucesso absoluto por lá. Não tinha como sair dali sem saber o que era a Crema di Santa Fina® — feita com açafrão de San Gimignano e pinoli. É delicada, aromática, diferente. Nunca tinha provado nada parecido. E entendi na hora por que é um dos queridinhos.

Também pedi o Champelmo®, que mistura toranja rosa com espumante Vernaccia. Refrescante, ácido na medida, perfeito pro calor da tarde. E um sorbetto de framboesa com alecrim que me pegou de surpresa: doce, herbáceo, equilibrado. Dava vontade de levar um pote inteiro.

Terminei esse momento com uma casquinha na mão, andando pelas ruelas da cidade, vendo as torres se destacando contra o céu azul. Mas dessa vez não era só uma turista com sorvete na mão. Era alguém que entendeu o que tinha ali dentro.

Pienza: onde o pecorino encontra a paisagem

Pienza é pequena, silenciosa e irresistivelmente perfumada. Andar pelas ruelas de pedra com o Val d’Orcia se abrindo ao fundo já seria o suficiente. Mas foi ali que vivi uma das experiências mais autênticas dessa viagem — e não só por causa da vista.

A cidade respira queijo. Em cada esquina, o aroma do pecorino te chama. Em uma lojinha familiar, entre prateleiras de madeira e potes de mel artesanal, fui convidada a experimentar diferentes versões do famoso Pecorino di Pienza — desde os mais frescos, suaves, até os curados, intensos e quebradiços. Cada um com uma história, uma textura, um tempo.

Provei um pedaço de pecorino fresco com um fio de mel de castanha por cima. O contraste era delicado, quase doce, como um lanche de final de tarde feito com carinho. Em seguida, um pecorino envelhecido, de casca dura, servido com pão rústico, azeite espesso e uma taça de vinho tinto local. Era mais que um lanche — era uma pausa com raiz.

Nos arredores da cidade, me sentei à mesa de uma quinta orgânica com vista para o Val d’Orcia, onde tudo servido ali vinha da própria terra. Começamos com uma tábua de queijos e embutidos da região, acompanhados por conservas artesanais e pães quentinhos, ainda com cheiro de forno a lenha. O destaque era um pecorino maturado servido com marmelada de figo — salgado e doce, untuoso e vibrante.

Depois veio o primeiro prato: pici al ragù bianco de vegetais. A massa, feita à mão, cozida no ponto exato, vinha envolta num molho denso, preparado com legumes da estação, vinho branco e ervas frescas. O sabor era profundo, com camadas. Caseiro, mas sofisticado.

Cada prato era acompanhado por um vinho local, escolhido ali mesmo na propriedade — tintos mais jovens com os queijos curados, branco encorpado com o pici. Tudo servia para potencializar o sabor e contar uma história de origem. Nada estava ali por acaso.

A sobremesa foi um biscoito de amêndoas com vin santo, servido sem pressa, com o cuidado de quem quer que você fique mais um pouco. E eu fiquei.

Pienza me lembrou que há comidas que a gente não encontra em menu de restaurante. Estão na simplicidade das mesas da região, no ritmo lento da produção artesanal, no modo como os moradores falam do que fazem com orgulho — e servem com generosidade.

Foi uma experiência de poucas palavras e muito sabor. Um tipo de refeição que a gente não termina querendo mais comida. A gente termina querendo mais tempo ali.

Essas três experiências — tão diferentes entre si — foram mais do que paradas saborosas. Elas me prepararam sem pressa, me afinaram o paladar, ajustaram meu olhar. Quando finalmente cheguei à vila onde passaria os próximos dias cozinhando, percebi que eu já estava diferente. Não porque tinha comido bem, mas porque tinha começado a comer com atenção. E era só o começo.

O coração da viagem: cozinhar, conectar e simplesmente estar

Quando cheguei naquela casa de pedra escondida entre as colinas perto de Arezzo, senti que tinha saído de uma vida e entrado em outra. A estrada até lá era sinuosa, cercada de ciprestes, e quando o portão se abriu, não foi só a vista que me arrancou o fôlego — foi o silêncio também.

A casa parecia antiga demais pra estar tão viva. Tinha lareiras acesas, janelas abertas para o verde, trilhas de lavanda pelo jardim e uma piscina que refletia o céu inteiro. Na primeira noite, ao redor de uma mesa longa com desconhecidos e pratos caseiros, percebi: era o começo de algo. E não era só uma viagem.

O ritmo do corpo encontra o tempo da terra

Acordávamos com o cheiro de pão no forno e o som da natureza acordando junto com a gente. As manhãs começavam leves: um café da manhã com frutas, iogurte, pães, queijos e geleias locais. Depois disso, cada dia tinha seu próprio tom. Às vezes yoga e meditação sob uma tenda branca no jardim; outras, alongamentos e exercícios que mais pareciam um convite pra sentir o próprio corpo de verdade — coisa rara na correria do cotidiano.

E esse era o ponto ali: parar, ouvir, habitar o próprio tempo. A vila oferecia espaço para isso. Tinha lugares pra caminhar, pra sentar, pra ler, pra simplesmente olhar as colinas mudando de cor ao longo do dia.

Em alguns dias, saímos em pequenas excursões: visitamos uma fazenda que produzia azeite artesanal e vinho, experimentamos queijos e embutidos em uma colina que parecia cenário de filme. Teve parada para almoço com vista, visita a uma vinícola boutique, e até tempo pra sentar numa pracinha e tomar gelato como se eu fosse moradora de lá.

Cozinhar como quem aprende a sentir de novo

As tardes pertenciam à cozinha — e ali, cada aula era mais do que culinária. Era uma experiência sensorial completa. A bancada era ampla, iluminada por luz natural, e os ingredientes pareciam escolhidos a dedo: tomates maduros, berinjelas firmes, azeites recém extraídos, ervas cortadas do jardim.

Ali, eu aprendi o que realmente significa cozinhar. Não era sobre acertar o ponto do risoto. Era sobre ouvir o barulho dele. Ver a manteiga derreter, perceber a hora exata em que o parmesão entra e transforma tudo.

Fizemos massa fresca do zero, pici enrolado um a um com a palma da mão, tortelloni recheados, molhos que levavam horas no fogo baixo, sobremesas com frutas da estação, bolos aromáticos, tortas salgadas com queijo derretendo. O toque das mãos virava prato, o aroma virava memória.

O mais bonito? Não era sobre fazer tudo certo. Era sobre estar presente. Queimamos massas, salgamos demais um molho, mas rimos e recomeçamos. Entre colheres de prova e taças de vinho, a aula virava jantar, e o jantar virava conversa.

Um dos momentos mais inesquecíveis foi quando preparamos risoto com trufas — as mesmas que tínhamos encontrado pela manhã, na caça guiada com cães. A sensação de transformar aquilo que você tirou da terra em algo que vai pra mesa é de uma intimidade enorme. O prato ficou cremoso, terroso, aromático. Um prato que me fez lembrar de Florença, e do risoto cítrico que comi por lá. Mas esse aqui era meu. Literalmente.

Teve também pão caseiro com fermentação lenta, servido ainda morno com azeite recém-prensado, do tipo que arde no fundo da garganta. A gente mesmo havia colhido as azeitonas no dia anterior, em um trabalho coletivo que uniu silêncio, risadas e dedos sujos de terra. E tudo isso foi servido na mesa grande, à sombra, com o céu mudando de cor atrás da pérgola.

Lembrei de Florença quando fiz meu primeiro risoto com limão e alcaparras. Lembrei de Pienza enquanto montava um prato com pecorino e marmelada. Tudo que comi antes parecia fazer sentido agora que eu sabia como era feito. E mais ainda: agora que eu fazia.

As pessoas que temperaram tudo

No começo, ninguém sabia muito bem como se apresentar. Mas os dias foram passando e as conversas cresceram. Cada refeição compartilhada criava mais laços. Sentávamos na pérgola, com vinho na mão e vista pra um pôr do sol dourado, e falávamos sobre tudo — de comida a silêncio, de rotina a amor.

Era um grupo de pessoas que tinham largado a pressa. E isso unia. Não era sobre viajar. Era sobre estar.

No jantar final, montamos um menu completo com tudo que aprendemos. Cada pessoa ficou responsável por um prato. Foi bonito ver como a comida, que era motivo de insegurança no primeiro dia, agora era fonte de orgulho. A mesa ficou cheia, não só de pratos lindos, mas de histórias vividas.

Como no filme — mas vivido por mim

Em um fim de tarde, sentei sozinha num canto da vila com uma taça de vinho e um prato de bruschetta ainda quente, e pensei: é isso. Foi esse o sentimento que a personagem de “Comer, Rezar, Amar” tentou traduzir. A parte do comer. A parte do rezar. A parte do se reconectar com o próprio desejo — não de fazer, mas de sentir.

Essa experiência foi um mergulho. Uma pausa com gosto. Uma forma de cozinhar com as mãos, com o corpo inteiro, com presença. Aprendi técnicas, sim. Mas aprendi mais ainda sobre o valor do tempo, da atenção, da generosidade à mesa.

Voltei pra casa diferente. Levei receitas, claro. Mas levei também um jeito novo de comer. Mais atento, mais curioso, mais leve.

E uma certeza: cozinhar pode ser uma forma de amor. E comer com intenção é, talvez, uma das formas mais bonitas de rezar.

O que permanece quando o prato esvazia

Essa não foi uma viagem feita de fotos. Foi feita de texturas, cheiros e silêncios. Foi um caminho que começou com uma colher de molho em Florença e terminou com as mãos cobertas de farinha em uma cozinha toscana.

E mesmo tendo voltado, eu ainda estou lá. Nos sabores, nos gestos repetidos, na lembrança do pão recém-saído do forno e na conversa que ficou ecoando depois do último gole de vinho.

Porque tem experiências que não se explicam. Se vivem.
E depois se carregam — no paladar, no corpo, no ritmo.

Se esse relato despertou alguma coisa em você, talvez seja o momento de fazer o mesmo: sair um pouco da pressa, entrar na cozinha, ouvir o som do azeite fervendo devagar.
Comece por aí.

A experiência faz sentido quando continua dentro da gente.

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