Mercado tradicional na medina de Marrakech com especiarias, lanternas e cerâmicas sob luz suave ao entardecer — uma das melhores feiras do mundo para conhecer.

As melhores feiras do mundo para conhecer: uma volta aos cinco continentes com presença e sabor

Eu amo uma feira.
Amo porque é ali, entre barracas e aromas, que a vida real de um lugar acontece.
É ali que você conhece a comida de verdade — aquela que não vem em menu plastificado nem em post de Instagram. É onde mora o tempero local, o improviso, a receita de família servida em um prato de papelão. E eu, que amo comer, sempre me deixo guiar pelos sabores de rua. Aqueles que contam histórias antes mesmo da primeira mordida.

Mas feira é mais do que comida.
É um ponto de encontro: de pessoas, de cheiros, de culturas. É onde você percebe o ritmo de um lugar, o jeito de negociar, de sorrir, de existir. Feira é pulsação viva. É rotina que vira rito. E é por isso que, em cada viagem, eu passo por elas — mais do que por museus ou monumentos.

E foi aí que me dei conta: falar de todas em um só artigo seria impossível.
Seria injusto. Com as histórias, com os sabores, com os detalhes. E o texto ficaria gigante — não por excesso de informação, mas por excesso de sentimento.
Foi por isso que resolvi fazer uma série.

Este é o primeiro artigo de uma série aqui no blog:
“Feiras que merecem ser vividas.”
Serão cinco capítulos com uma curadoria afetiva das feiras mais marcantes que já caminhei. Feiras que acolheram, surpreenderam, encantaram. Cada capítulo com um recorte diferente: intensidade, sabor, beleza, surpresa, acolhimento. Sempre com um fio em comum — presença e verdade.

E resolvi começar por cima:
Uma volta ao mundo pelas melhores feiras do mundo para conhecer — não com pressa, mas com curiosidade. Uma feira por cada canto do planeta, cada uma escolhida não pela fama, mas pelo que me fez sentir.

Não é uma lista. É uma travessia sensível.
E o convite é esse: vem comigo. Sentir o mundo — uma feira de cada vez.

Mergulho na África: sabores, sons e sentidos

Quando penso na África, penso em intensidade.
Em rituais que são cotidianos. Em cheiros que marcam, em vozes que ecoam, em tecidos que falam sem abrir a boca.

As feiras aqui não são só comércio. São vida em movimento. São palco, cozinha, templo e conversa — tudo misturado, tudo ao mesmo tempo. E é por isso que escolher uma só foi quase impossível.

O Makola Market, por exemplo, fica em Acra, capital de Gana — uma cidade costeira, quente e pulsante, onde o presente e o ancestral caminham lado a lado. Lá, o mercado é um labirinto caótico e fascinante, onde a cidade acontece de verdade. As chamadas market queens — mulheres fortes, comerciantes natas — comandam as barracas com presença e uma força tranquila que dá gosto de ver. Entre peixes defumados, tecidos e perfumes do dia, está o kente, um pano tradicional ganês, tecido em tiras estreitas e costurado à mão. Cada cor, cada padrão, carrega um significado — coragem, sabedoria, comunidade. Não é só tecido: é identidade.

Em outro canto do continente, na África do Sul, tem a Neighbourgoods Market, em Joanesburgo, uma feira urbana com alma contemporânea. É o tipo de lugar onde a tradição encontra o novo: você caminha entre barracas de comida artesanal, cerveja local, arte impressa, e pratos que misturam influências africanas com toque cosmopolita. Comi ali um curry suave de cordeiro com pão artesanal — sentado num degrau, com o som de um saxofone ao fundo. Gente jovem, mistura de idiomas, cheiro de café e especiarias. É outra África — e é linda também.

Cada uma dessas feiras tem seu próprio pulso.
Mas se teve uma que me atravessou de um jeito diferente, foi ela.

A medina de Marrakech.
Um labirinto de história, som, poeira e luz.
Um lugar que não se visita — se vive.

Medina de Marrakech – Marrocos

Onde até se perder tem sabor e sentido.

Chegar à medina de Marrakech no fim da tarde de outubro é como entrar numa história que já está acontecendo antes de você. As paredes terracota da cidade ganham um brilho dourado quando o sol começa a baixar, e o calor — que em outros meses pode ser quase brutal — vira um abraço seco e morno. Outubro e abril são, aliás, os melhores meses pra viver Marrakech: clima agradável, céu limpo, e o suficiente de movimento pra sentir a cidade pulsando, mas sem ser engolida por ela.

A entrada da medina te engole mesmo assim. As ruelas apertadas, cheias de vida, som, poeira e perfume, são uma dança que você só aprende no passo. Os souks, que são como veias abertas de comércio tradicional, te levam por caminhos inesperados. O Souk Semmarine, por exemplo, é quase a avenida principal desse labirinto — cheio de tecidos pendurados como cortinas, lanternas acesas pendendo do teto, espelhos esculpidos, bolsas de couro e prata trabalhada. Tudo ali é arte com função. E sim, pechincha faz parte do ritual. É esperado. Quase um jogo respeitoso.

A medina de Marrakech, tombada como Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO, é uma das mais antigas e importantes do mundo árabe. Ela foi fundada no século XI, quando os almorávidas transformaram a cidade em um centro político e espiritual do norte da África. E desde então, a medina nunca parou de pulsar. Ela representa não só o coração comercial da cidade, mas também um espaço de trocas culturais, onde saberes, sabores e histórias se cruzam há quase mil anos. Marrakech cresceu em volta dela — e até hoje, ela dita o ritmo da cidade.

Foi ali que vi uma loja inteira iluminada por lanternas acesas mesmo com a luz do dia. E aí entendi que luz em Marrakech não tem hora. É presença. É cuidado. A cena era tão linda que parei só pra olhar. Nem tirei foto. Guardei na retina.

Mais pro fundo da medina, o cheiro muda. De especiarias doces e florais passa pra algo mais denso: o couro, o ferro, o chá sendo fervido. Um senhor me ofereceu tanjia marrakshia — carne cozida lentamente em potes de barro selados, enterrados nas brasas do hammam. É um prato típico, quase cerimonial. O sabor é profundo, meio defumado, e vem acompanhado de pão fresco pra raspar o molho até o fim. Comi sentada num banquinho baixo, entre o som das conversas em árabe e francês, e aquela brisa leve que só aparece quando a noite começa a se anunciar.

Claro que não parei por aí. Provei também briouates, uns pastéis triangulares recheados de carne e amêndoas com canela. Quase uma sobremesa salgada. E depois, não resisti aos chebakia — biscoitinhos em formato de flor, fritos e mergulhados em mel com gergelim. Pra acompanhar, chá de menta. Sempre servido com cuidado, de uma altura que faz a espuma subir na xícara.

A medina abre todos os dias, do amanhecer até o cair da noite, mas o melhor é ir no fim da tarde. Porque quando o céu começa a escurecer, a praça Jemaa el-Fna, que fica na entrada da medina, se transforma. É como se a cidade se levantasse outra vez. Aparecem barracas de comida com placas improvisadas, caldeirões fervendo, gente rindo, músicos, contadores de histórias, acendedores de lamparinas. Tem algo de mágico ali — mas é um mágico de verdade, não turístico. É a cidade mostrando sua alma.

Saí com os sentidos acesos e as mãos cheias. Comprei um par de babouches vermelhos, bordados à mão — escolhi depois de experimentar uns oito pares, todos lindos. Também trouxe uma tigela de cerâmica azul-cobalto, feita ali, na hora, por um senhor que moldava o barro com uma calma contagiante. Foi o objeto mais simples e mais bonito que eu vi naquela viagem. Até hoje, quando coloco frutas nela, lembro da poeira do chão de Marrakech e do cheiro de hortelã no ar.

É por tudo isso que essa feira está aqui. Porque ela não foi só uma experiência. Foi um mergulho. A medina de Marrakech é uma das melhores feiras do mundo para conhecer porque te entrega tudo ao mesmo tempo: beleza, sabor, caos, arte, história, presença. E se você estiver com os olhos e o coração abertos, ela entrega ainda mais.

Sabores que sussurram: a Ásia em gestos e mercados

A Ásia, pra mim, tem um tempo próprio.
Não é que as coisas aconteçam devagar — elas acontecem no ritmo certo. No tempo do chá fervendo, do incenso subindo em espiral, do gesto cuidadoso ao entregar uma comida ou dobrar um pano. É um continente que ensina pela repetição, pela presença, pela delicadeza. E nas feiras, isso se revela com força.

Antes de chegar à minha escolhida, pensei em outras que ficaram na pele.
O mercado flutuante de Damnoen Saduak, na Tailândia, por exemplo — aquele sobre as águas, onde os barcos servem pad thai direto das panelas e as frutas tropicais brilham sob o sol da manhã. Uma experiência linda, intensa, cheia de cor e movimento. E claro, ela vai aparecer mais pra frente nessa série. Não tem como não entrar.

Também me lembrei do mercado noturno de Luang Prabang, no Laos — uma rua que se transforma em silêncio bordado, com luz baixa, comida quente e tecidos Hmong estendidos com carinho sobre esteiras. Um lugar que quase não tem som, mas diz muito. Uma feira que convida mais a contemplar do que a consumir.

Mas se teve uma que me tocou profundamente, de um jeito contido, refinado, quase cerimonial, foi ela.
O mercado de Nishiki, em Kyoto.
Um corredor de tradições, sabores ancestrais e gestos calmos.

Nishiki Market – Kyoto, Japão

Onde tradição e presença andam de mãos dadas.

Cheguei a Kyoto num final de outono. O tipo de frio que pede cachecol, mas ainda permite caminhar com calma. As folhas avermelhadas dos plátanos estavam por toda parte, e a cidade — já silenciosa por natureza — parecia ainda mais recolhida.

Caminhei devagar até o centro, onde uma rua estreita e coberta começava a se encher de luz suave e movimento contido. Era o Nishiki Market — ou, como é chamado por lá, “a cozinha de Kyoto”. Um nome que carrega mais do que tradição: carrega afeto.

Essa feira existe há mais de quatrocentos anos. Começou no século XVII, como um ponto de venda de peixes frescos, e foi crescendo com o tempo — mas sem jamais perder a delicadeza. Hoje, são mais de cem lojas que se estendem por cinco quarteirões, a maioria passada de geração em geração, como quem cuida de um legado.

A maioria das lojas abre por volta das nove da manhã e vai até o final da tarde, geralmente até as seis. Em alguns dias da semana, como quartas e domingos, é comum ver portas fechadas. Como se o próprio mercado entendesse a importância do silêncio e do descanso.

Fui numa segunda-feira, perto das dez. As lojas ainda abriam devagar, o chão sendo varrido com vassouras de palha, e um cheiro sutil de dashi — o caldo base da culinária japonesa — já tomava o ar. Misturado ao aroma de chá e carvão aceso, formava uma espécie de boas-vindas invisível.

O que encanta ali é o cuidado. Picles artesanais dispostos como joias. Folhas de yuba, a pele delicada do tofu, dobradas em pilhas perfeitas. Chás verdes em latas antigas, doces de arroz embrulhados em madeira, bolinhos grelhados no espeto. Tudo feito com tempo, tudo servido com calma.

Comi um bolinho de arroz com missô, envolto em folha de bambu. Depois, um mochi fresco, recheado com anko — a pasta doce de feijão vermelho. A textura era tão suave que parecia um elogio. Levei comigo um pacote de hojicha, o chá verde torrado, com aroma terroso e abraço quente.

E não resisti a uma tigela de cerâmica, feita ali por um artesão que moldava a argila como se estivesse escrevendo. Era assim: nada ali parecia feito só pra vender. Tudo carregava um gesto de intenção.

Passei pela loja de facas Aritsugu, fundada em 1560, e fiquei observando em silêncio um senhor afiando lâminas com movimentos lentos. Ele me olhou nos olhos, acenou levemente com a cabeça, e voltou ao trabalho. Era como se dissesse: “Você não precisa falar. Só estar aqui já basta.”

E foi assim que entendi por que o Nishiki Market ficou em mim.

Ele não é o mercado mais grande, nem o mais impressionante. Mas é um dos mais verdadeiros.
Um lugar onde o tempo se estende, o paladar se refina, e o gesto vale tanto quanto o sabor.

O Nishiki Market é, com certeza, uma das melhores feiras do mundo para conhecer se o que você busca é mergulhar na cultura de um lugar com todos os sentidos — especialmente os mais sutis.

Não se atravessa esse mercado com pressa.
Ali, até comprar um doce pode ser um gesto de reverência.

O continente do sabor, do corpo e da mistura

A América é um continente que se sente antes de se entender.
Aqui, as feiras são barulhentas, coloridas, generosas. A comida tem cheiro de casa, o som vem junto com o passo, e o toque é parte da conversa. Nada é silencioso, nada é neutro. Tudo é excesso — mas de um excesso que acolhe.

Foi difícil escolher só uma.

Pensei no mercado de Oaxaca, no México, onde o milho é ancestral, o chocolate é sagrado e o cheiro de pimenta paira no ar como uma memória viva. Já falei dele antes aqui no blog, num texto sobre o Día de los Muertos, e sei que ele ainda vai voltar por aqui — porque é daqueles lugares que ficam.

Lembrei também do Mercadão de São Paulo, esse gigante urbano onde a cidade se mistura dentro de um sanduíche de mortadela ou de um pastel de feira. Ele tem uma força própria, um ritmo que só São Paulo entende — e que só quem entra com fome (de comida ou de vida) consegue sentir.

Mas entre todas as possibilidades, foi no alto dos Andes, em Cusco, que uma feira me atravessou diferente.
Não pela grandiosidade, mas pela presença.

O Mercado de San Pedro é mais do que um ponto comercial.
É um ritual do dia a dia. Um lugar onde a comida tem alma, as cores têm terra, e o tempo se dobra.

É sobre ele que eu quero te contar agora.

Mercado de San Pedro – Cusco, Peru

Onde a tradição andina se serve quente, em colheradas e cores.

Acordei cedo em Cusco. A altitude já fazia o corpo desacelerar, e talvez fosse isso que deixou meus passos mais atentos naquela manhã. O sol ainda estava tímido, e a cidade, aos poucos, se levantava — com seus telhados vermelhos, as ruas de pedra e aquele friozinho que pede cheiro de comida quente.

Caminhei até o Mercado de San Pedro, que fica a poucos minutos da Plaza de Armas, no coração da cidade. A fachada é simples, com um grande telhado de ferro, sustentado por colunas desenhadas por Gustave Eiffel — sim, o mesmo da torre de Paris. Mas ali dentro, nada lembrava a França. O que se via era o Peru mais profundo, mais vivo, mais cotidiano.

Esse mercado existe desde 1925, e até hoje pulsa como um centro real de abastecimento. É ali que os moradores fazem suas compras, onde as vendedoras — quase todas mulheres — arrumam com capricho as bancas de frutas, folhas, temperos, carnes e tecidos. Nada ali é performático. Tudo é verdadeiro.

A primeira coisa que me atravessou foi o cheiro. Um misto de caldo, flores e madeira molhada. Passei por bancas que vendiam milho roxo, batatas de mil tipos, chirimoya (doce como um beijo) e aguaymanto (azedo como infância). Mais adiante, vi folhas de coca sendo separadas com calma, sachês de chá para altitude, pacotes de quinoa, e até amuletos andinos para proteção da casa.

Fui puxada pelo cheiro de caldo de cabeça de cordeiro, servido em tigelas fumegantes, com batata e grão-de-bico. Sentei num banco de madeira, sem saber se era a fome ou o frio que pedia aquilo — e tomei tudo até o fim, acompanhada por uma senhora que comia em silêncio ao meu lado.
Depois, comi um pedaço de pan chuta, um pão grosso, meio adocicado, feito com anis. Aquilo me abraçou por dentro.

Comprei uma manta de alpaca tingida com corantes naturais, de um tom entre o bordô e o terra, e uma pequena boneca de pano feita por uma mulher que sorriu com os olhos quando eu disse que era “para guardar o Peru dentro de casa”.

O mercado funciona de segunda a sábado, das seis da manhã até o final da tarde. Aos domingos, abre mais cedo, mas fecha por volta do meio-dia. E mesmo com o movimento constante, tudo parece ter ritmo. Não tem música alta, nem vendedores gritando. Tem conversa, tem presença. O som das sacolas se enchendo, das colheres batendo, das risadas baixas.

Ali, tradição não é encenação. É rotina.

No San Pedro, o que se vende é o que se vive.
A comida não é gourmetizada, os preços não são pensados pra turista, e a beleza está justamente no que é bruto, cheiroso, amável. Tudo é feito à mão. Nada é feito com pressa.

É por isso que, entre tantas feiras das Américas, essa ficou em mim.

O Mercado de San Pedro é uma das melhores feiras do mundo para conhecer se você quer sentir o que é a vida real no alto dos Andes. Não tem filtro, nem espetáculo. Tem terra, caldo quente, manta colorida e alma de sobra.

Se for, vá cedo. Vá com tempo. Vá com respeito.
E se puder, leve mais que lembrança: leve escuta.

A beleza que alimenta: a Europa que vive nas bancas

A Europa encanta com pouco.
Uma janela antiga, um pão ainda quente, o som de uma língua que você não entende, mas sente. E talvez seja por isso que suas feiras não precisem de espetáculo — elas são beleza vivida.

Pensei em muitas antes de escolher uma.
O Marché des Enfants Rouges, em Paris, por exemplo, me ganhou pela simplicidade elegante. É o mercado coberto mais antigo da cidade, de 1615, onde bancas marroquinas dividem espaço com barracas japonesas e pratos franceses caseiros. É pequeno, quase tímido, mas tem alma.

O Great Market Hall, em Budapeste, me atravessou pela arquitetura imensa, pelas barracas de pimentão em pó, pelas senhoras de avental vendendo repolho fermentado como quem conta histórias. Ali, o leste europeu mostra sua força com pouco — e com muito peso.

Mas se teve uma feira que me pegou de jeito, foi no sul.
Ali, onde o Mediterrâneo se mistura com a arte, e o azeite é quase uma religião.

Foi na Boquería, em Barcelona, que eu vivi a Europa pelos sentidos.
E é sobre ela que quero te contar agora.

La Boquería – Barcelona, Espanha

Onde a Europa se entrega em cor, azeite e barulho bom.

Cheguei cedo, como sempre faço quando quero ver um lugar de verdade. Barcelona ainda despertava, com aquele ar fresco que sopra do mar para as Ramblas, e o céu azul claro deixava as sombras bem desenhadas no chão. Desci a Rambla a pé, devagar, até encontrar o arco de ferro escuro que sinaliza a entrada da Boquería. Um mercado com nome cantado e história longa: os primeiros registros são de 1217 — quando ainda era só uma feira a céu aberto de carne e peixe.

Hoje, a Boquería é o coração caótico e encantador da cidade. E apesar de todo o vai e vem turístico, ali dentro a cidade verdadeira ainda acontece. Especialmente nas primeiras horas da manhã.

Fui numa quarta-feira, pouco depois das 9h. O som das bancas ainda abrindo, o barulho das rodas de carrinhos pesados, os primeiros cheiros de azeite sendo aquecido, peixe fresco, café forte. É um mercado coberto, mas a luz natural entra pelas laterais. Tudo ali é excesso bonito: de cor, de textura, de gente. A Europa do sul não economiza no sabor — e a Boquería é prova viva disso.

Passei por bancas de frutas cortadas com capricho, vendidas em copinhos como sobremesas frescas. Comi um mix com manga, morango e kiwi — a fruta parecia mais viva ali. Logo em seguida, parei num balcão onde um senhor servia jamón ibérico cortado na hora. Fino, quase transparente. Peguei algumas fatias e um pão com tomate ralado e azeite, clássico da Catalunha. Comi em pé, encostada no balcão, observando ele trabalhar com a precisão de quem faz isso há mais de 30 anos.

Mais à frente, pedi uma tortilla espanhola, quente e macia por dentro, com batatas quase doces de tão bem feitas. E depois, não resisti a um suco fresco de frutas vermelhas com laranja, feito na hora, que lavou tudo por dentro. A comida ali não vem com etiqueta gourmet. Vem com presença. Com gosto de verdade.

A Boquería é dividida por zonas, e caminhar entre elas é quase como mudar de cidade. Há a parte de peixes e mariscos, vibrante, úmida, ruidosa. A parte de especiarias e embutidos, seca, aromática, hipnotizante. A parte das bancas de ovos, frutas secas, vinhos, doces, panelas de cobre. Tudo dialoga. Tudo cheira. Tudo grita em voz baixa: “sente mais”.

Comprei um pequeno pote de pimentón de la Vera, aquele páprica defumada que muda o sabor de tudo. Trouxe também um pano de cozinha bordado com limões — que mais parece decoração do que utilidade. E uma colher de madeira de oliveira, entalhada à mão por um artesão de mãos enrugadas, que me disse sorrindo: “essa vai viver muito”.

A história da Boquería é tão antiga quanto a cidade. Começou medieval, virou mercado fixo em 1840 e, desde então, só cresceu. Sobreviveu a guerras, mudanças, modismos — e se transformou sem perder a essência.
Hoje, abre de segunda a sábado, das 8h às 20h30. E mesmo sendo ponto turístico, continua sendo ponto de encontro para os locais. Sobretudo cedo, quando ainda dá pra ouvir o idioma verdadeiro da cidade: o catalão misturado ao espanhol, ao italiano, ao silêncio entre uma escolha e outra.

A Boquería é Barcelona em forma de mercado.
É a Espanha em forma de cheiro.
É a Europa que se vive com os sentidos.

É por isso que, entre tantas feiras do continente, foi ela que ficou.
Porque ela te envolve sem pedir licença.
E porque o sabor que você leva na boca vai embora mais tarde do que qualquer lembrança.

A Boquería é, sim, uma das melhores feiras do mundo para conhecer.
E se puder, vá cedo. Vá com fome. Vá com olhos abertos e mãos livres.
A Europa, naquele canto, ainda é feita à mão.

Onde o mar encontra a terra: a Oceania em bancas e sabores

A Oceania é diferente.
Não só pela distância física, mas pela sensação de que tudo lá tem outro ritmo. Talvez seja o isolamento geográfico. Talvez seja o céu mais largo, o mar mais presente, ou o silêncio mais respeitado. Mas o fato é: as feiras aqui são menos sobre barulho, e mais sobre pertencimento.

Pensei em várias antes de escolher uma.
O Otago Farmers Market, na Nova Zelândia, é um lugar que mora na memória. Pequenino, todo ao ar livre, com produtores locais vendendo vegetais, pães, frutas e queijos — tudo feito ali mesmo, com calma. É uma feira silenciosa, mas cheia de raiz. Fica em Dunedin, uma cidade costeira que mistura o frio do sul com o calor humano de quem sabe cuidar.

Pensei também nas feiras das ilhas do Pacífico, onde a comida ainda vem da rede de pesca ou da plantação do quintal. São lugares onde não se vende o que não se entende. Mas esses mercados ainda não pisei — e, por isso, ficam guardados pra um futuro texto.

Quem ficou mesmo foi ela.
A mais viva, a mais plural, a mais presente.
O Queen Victoria Market, em Melbourne, é onde a Oceania urbana se revela — com todos os seus cheiros, contrastes, imigrantes e afetos.

É sobre ele que eu quero te contar agora.

Queen Victoria Market – Melbourne, Austrália

Onde o mundo inteiro cabe numa feira só — e ainda sobra espaço pra sentir.

Cheguei em Melbourne com o corpo ainda no fuso e o coração querendo chão. Uma cidade grande, cheia de prédios de vidro e linhas retas, mas com um sotaque que dança. Logo no primeiro dia, alguém me disse: “Vai cedo ao Queen Vic.” Nem foi pergunta — foi ordem com carinho.

Fui.

Era terça-feira de primavera, perto das nove. O sol ainda era tímido, o vento seco, e a feira já pulsava. O Queen Victoria Market existe desde 1878. É um dos mercados ao ar livre mais antigos e maiores da Austrália. E mesmo com seu tamanho, ele é íntimo. Não pelo espaço — mas pelo jeito como você é acolhida.

São mais de 600 bancas. Mas não parece. Parece uma vizinhança estendida, feita de cheiros, risadas e vozes misturadas em inglês, grego, vietnamita, italiano, árabe, tailandês. Cada corredor parece um continente. E é isso que faz dele um símbolo da Oceania: a mistura não é exceção — é regra.

Comecei pela parte dos frescos. Frutas gigantes, tomates com perfume de verão, cogumelos de todos os formatos. Provei uma nectarina branca que quase derreteu na boca. Depois fui puxada pelo cheiro de pão recém-assado e parei numa barraca de focaccias recheadas com queijo e alho — comi ali mesmo, sentada no degrau da barraca ao lado, com os dedos ainda melados de azeite.

Na área coberta, as barracas de carnes, queijos e peixes pareciam vitrines. Mas com alma. Comprei um pedaço de queijo cheddar artesanal, feito ali na região de Victoria, forte e amanteigado. Também levei azeite prensado a frio de uma fazenda familiar que o vendedor descreveu como “azeite de domingo”.

Mais adiante, almocei num balcão de comida turca: um gözleme de espinafre e queijo feito na hora, na chapa, com limão espremido por cima e chá preto doce pra acompanhar. Tudo ali é simples — mas tem uma presença que impressiona. Você sente que quem cozinha também come ali. Não é um teatro pra turista.

Comprei uma tábua de madeira de oliveira, linda, feita por um artesão que assina cada peça com uma queima leve. E um pano de prato estampado com ilustrações de aves australianas — porque claro que eu queria levar um pedaço do país pra casa, mas sem transformar em souvenir genérico.

O mercado funciona quase todos os dias, com variações nos setores — mas os dias cheios são terças, quintas, sextas e sábados. As quartas à noite têm o Night Market, com música ao vivo, comidas de rua do mundo todo, luzes penduradas, cheiro de especiarias no ar. É outra vibe, mas com o mesmo espírito: comunidade com sabor.

O Queen Vic não é bonito no sentido clássico. Não tem vitrais nem colunas antigas. Mas ele tem algo que é ainda mais raro: ele tem cotidiano vivido com alma. As pessoas ali não estão encenando. Estão existindo. Comprando, cozinhando, escolhendo com calma. É uma feira que representa a Oceania porque mistura tudo — mar, terra, sabor, respeito — sem precisar explicar.

É por isso que ele fecha esse artigo.
Porque o Queen Victoria Market não é o fim da viagem — é uma travessia por si só. Um lugar que te mostra como o mundo pode se encontrar num corredor de barracas, desde que haja comida quente, olhos gentis e tempo pra parar.

E sim, o Queen Vic é uma das melhores feiras do mundo para conhecer.
Mas mais do que isso: ele é uma das melhores pra sentir o mundo como ele é — imperfeito, misturado, delicioso.

E a Antártica?

Bom… não dá pra falar do mundo inteiro sem lembrar dela.
A Antártica é um continente, sim — mas um bem diferente.
Não tem praça, não tem vizinhança, nem barracas montadas no domingo de manhã.
O que tem são bases científicas, vento que canta, gelo que range e pinguins que parecem sempre atrasados pra algum compromisso importante.

Não, não tem feira.
Mas eu gosto de imaginar que, entre um turno de pesquisa e outro, alguém abre um pote de bolacha e diz:
“Trouxe da minha terra.”
E talvez ali, no meio do nada branco, aconteça uma pequena feira improvisada:
um café instantâneo compartilhado, uma barra de chocolate que virou moeda de troca, um pãozinho esquentado com gosto de lar.

Porque no fundo, feira não é lugar — é gesto.
E quando há comida sendo dividida e presença verdadeira, alguma coisa do espírito de feira aparece.
Mesmo que o chão seja de gelo e a mesa, uma bancada de laboratório.

Porque feira é sobre estar

Foram cinco mercados.
Cinco lugares onde o mundo se revelou de forma íntima, caótica, generosa.
Não os mais famosos. Nem os mais perfeitos. Mas os que, de alguma forma, me atravessaram.

Feiras onde o cheiro da comida diz mais do que o idioma.
Onde o toque no tecido, o jeito de entregar o troco ou o silêncio entre um prato e outro contam mais sobre um lugar do que qualquer guia de viagem.

Feiras onde o mundo não se exibe — ele se oferece.

A série “Feiras que merecem ser vividas” nasceu do desejo de falar de viagem com verdade.
De mostrar que, mais do que atrações, o que nos marca são os encontros pequenos.
Uma comida servida com afeto.
Um objeto escolhido com calma.
Um gesto que fica.

E sim, ficou coisa de fora.
Outras feiras virão. Porque o mundo é grande, e o afeto, maior ainda.

Porque no fim das contas, feira é sobre isso.
É sobre estar.
É sobre levar o mundo pra dentro — e deixar um pouco de si por onde passa.

E se você chegou até aqui, viajando por essas palavras,
então talvez já tenha percebido:
algumas feiras a gente não visita.
A gente sente. E leva pra sempre.

Ainda tem muito mundo pra sentir

Essa foi só a primeira travessia.
Nos próximos capítulos, sigo dividindo outras feiras que marcaram — por sabor, por beleza, por acolhimento, por surpresa.

Uma de cada vez, com o mesmo cuidado e presença.
Se quiser continuar essa viagem comigo, fica por aqui.

O próximo destino pode até mudar.
Mas a intenção segue a mesma:
sentir o mundo — uma feira de cada vez.

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