Entre rios, silêncios e mergulhos: 10 dias entre o Pantanal e Bonito no ritmo certo

Não foi uma daquelas viagens planejadas com meses de antecedência, roteiro em planilha, expectativa nas alturas. Na verdade, foi o contrário. Eu estava precisando de ar, de chão, de um tipo de pausa que a cidade não oferece — mas também não queria me isolar no meio do nada. Só queria estar num lugar onde o tempo passasse diferente. Onde eu pudesse andar devagar, comer bem, me molhar de rio e aprender alguma coisa que não viesse de uma tela.

Foi assim que surgiu a ideia de unir dois destinos que, até então, viviam separados na minha cabeça: o Pantanal e Bonito. Um conhecido pelo silêncio, pelos bichos, pelo mato que respira. O outro pela água clara, pelas flutuações, pelos tons de azul que a gente acha que só existem em filtro.

Parecia demais pra uma viagem só. Mas, na prática, funcionou como um equilíbrio perfeito. Onde um traz a terra, o outro traz a água. Onde um chama pro recolhimento, o outro convida a explorar. E os dois, juntos, me mostraram um Brasil que a gente quase esquece que existe — não porque está escondido, mas porque exige um tipo de olhar que a gente precisa reaprender a usar.

Esse texto é pra te contar como foi percorrer esses dois lugares com calma, com intenção e com o tipo de abertura que só vem quando a gente solta o controle.

Nada aqui foi feito pra ser “checklistável”. Mas tudo valeu ser vivido.

Por que Pantanal e Bonito juntos — e como isso mudou o roteiro (e o ritmo da viagem)

No começo, pensei em escolher: ou Pantanal, ou Bonito. Era o que a maioria dos roteiros sugeria. Como se fossem dois mundos diferentes, impossíveis de combinar numa mesma viagem sem correria ou cansaço.

Mas foi aí que percebi que não precisava escolher. Eu podia costurar os dois — e criar um roteiro que respeitasse o tempo que eu queria viver.

Porque apesar das propostas diferentes, eles não competem entre si. Pelo contrário: se complementam.

O Pantanal me ofereceu imersão. Um convite a estar quieta, a andar com os bichos, a acordar com a luz natural e aceitar que nada ali acontece sob comando. É um lugar onde a gente aprende a ver sem pressa — e a escutar antes de falar.

Bonito, por outro lado, foi onde a água me levou. Literalmente. Cada passeio é uma chance de flutuar, de mergulhar, de enxergar beleza onde a gente costuma só pisar. Lá, tudo é movimento — mas um movimento gentil. Nada de agito. Só encantamento.

O caminho entre os dois também surpreende. Saí de uma pousada no Pantanal, próxima à Transpantaneira, e fui de carro até Bonito. Foram cerca de 6 horas, com paradas no meio do caminho, estrada boa e paisagens que iam mudando aos poucos: do campo aberto às colinas verdes, do barro ao cascalho, do silêncio absoluto ao som de cachoeira.

Essa transição entre os dois lugares virou parte da viagem. Era como sair de um retiro e entrar num banho de cor.

Se eu tivesse dividido, talvez cada destino tivesse brilhado menos. Mas juntos, eles criaram algo que ficou completo.

E agora, te levo comigo por cada um — do cheiro de terra molhada no Pantanal ao brilho submerso dos rios de Bonito.

O Pantanal vivido com tempo: quando cada passo revela um bioma inteiro

O Pantanal é o tipo de lugar que não se atravessa — se absorve. E só quando você se permite caminhar com ele, e não por cima dele, é que o verdadeiro encanto começa. Não é cenário pra performance. É território de escuta, de atenção, de presença. E, se você der tempo, ele mostra tudo o que tem — inclusive o que não estava procurando.

A pousada onde fiquei, como muitas da região de Poconé, oferece uma rotina que parece simples, mas é muito bem orquestrada: guias locais experientes, horários que respeitam o calor, e uma adaptação constante às mudanças do clima e da fauna. O que mais me marcou foi isso: não tem fórmula pronta. Tem adaptação. Tem olhar treinado. Tem paciência.

Passeio de barco ao entardecer: onde o céu e a água se confundem

No Pantanal, a luz do fim da tarde não é só bonita — ela muda tudo. As aves ficam mais ativas, o ar esfria, a paisagem adquire camadas douradas. É por isso que os passeios de barco entre 16h e 18h são tão valorizados. Fui num barco sem cobertura, com motor silencioso, e logo percebi: o barco não “leva”, ele integra.

O guia navegava devagar, desviando de galhos e bancos de areia. A cada curva, um bicho novo. Capivaras com filhotes, garças caçando, um grupo de bugios atravessando as copas. O guia contou que muitos bichos se aproximam da margem nesse horário porque o calor diminui e a caça — pra eles — fica mais fácil. Já para nós, é o momento ideal pra ver sem atrapalhar.

Uma dica essencial: leve roupas claras, manga longa, boné e água gelada. E use um repelente forte — principalmente nas épocas de cheia, quando os mosquitos estão mais ativos. Ah, e se possível, não vá com celular em modo selfie: vá com o olhar aberto. Você vai ver mais do que consegue fotografar.

Safári terrestre: quando estrada vira sala de aula

O safári é feito em veículos abertos e adaptados — alguns com bancos elevados, o que dá uma boa vantagem pra observação. Mas o diferencial é o guia. E aqui vale muito se informar antes: pergunte se o profissional é da região, quanto tempo está ali, qual sua formação. Os melhores guias não são os que decoraram nomes científicos — são os que conhecem os sinais do mato como quem lê o próprio corpo.

Logo cedo, por volta das 5h30, saímos pra estrada de chão. Vi pegadas frescas de onça (que depois soube serem do dia anterior), um veado-campeiro correndo entre arbustos, e uma série de aves que eu não saberia nomear se não fosse o guia explicando. Ele contou que, ao contrário do que muita gente pensa, os animais pantaneiros não vivem “no mato fechado” — eles habitam os campos abertos, alagados, de transição. Por isso, com atenção, é possível ver muito — mesmo sem “adentrar” floresta alguma.

Se for no período da seca (junho a setembro), os bichos ficam mais concentrados nas margens de lagos e rios. E é ali que mora a mágica: quem está com calma, vê mais. Porque os animais não somem — a gente é que não sabe esperar.

A pesca como prática de escuta

Mesmo quem nunca pescou (como eu) vai sentir que há algo meditativo nesse gesto. Com o sol ainda baixo, entramos no barco e o guia preparou as linhas. A isca era natural, o destino era o rio próximo da pousada. A expectativa era zero — e talvez por isso a experiência tenha sido tão rica.

Ficamos mais de uma hora em silêncio, e ali entendi que a pesca no Pantanal não é sobre pegar peixe. É sobre escutar. O guia explicou que a pesca esportiva ali é controlada e cada espécie tem seu tempo de defeso, pra garantir o equilíbrio da fauna. Os peixes mais comuns são o pacu, o pintado e a piranha, e alguns passeios permitem que você leve pro almoço — mas sempre com consciência ambiental. Ali, o peixe tem dono: o rio.

Se decidir fazer esse passeio, confirme com antecedência como funciona o manuseio e o destino do que for pescado. Leve chapéu de aba larga, protetor solar e, se quiser registrar, use equipamento com bateria cheia. Não há tomada no meio do rio — nem pressa.

Focagem noturna: um outro Pantanal começa quando escurece

A primeira vez que escutei o termo “focagem” achei que era algo tenso — tipo safari noturno com caçada. Mas não. É uma experiência sensorial e, às vezes, até poética. O carro sai por volta das 19h, em total escuridão, e a única luz é a da lanterna de longo alcance do guia. Com ela, ele “foca” os olhos dos animais, que refletem no escuro.

É possível ver felinos pequenos, corujas, jacarés, tamanduás e, com sorte, até raposas ou lobos-guará. Mas, mais do que ver, o que impressiona é o som. A mata faz barulho. Os grilos, as folhas, o vento. E ali, dentro do carro aberto, você escuta tudo. Uma dica prática: leve casaco leve (o vento bate), calça comprida e mantenha o silêncio. Falar alto espanta os bichos — e o encanto.

A cavalgada como forma de pertencimento

A cavalgada foi uma das atividades que mais me conectou com o ritmo pantaneiro. Os cavalos pantaneiros são pequenos, resistentes e tranquilos. São criados ali, soltos, e reconhecem os caminhos. Saímos por campos abertos, margeamos córregos, passamos por áreas com vegetação rasteira. Os guias contavam histórias de quando os bois cruzavam a Transpantaneira a pé, de como o som dos cascos avisa a bicharada, de como cada canto do mato tem um nome — e um dono.

A dica aqui é confiar no animal. Não tentar “controlar”, só acompanhar. E leve calça confortável, protetor solar, e uma capa de chuva se for época de transição. O céu no Pantanal muda rápido.

Trilha da Vazante: um dos trechos mais raros (e intocados) do bioma

Esse talvez tenha sido o passeio mais diferente de todos. A Trilha da Vazante é suspensa — sim, literalmente elevada sobre o solo — pra permitir que a vegetação, os ninhos, as pegadas e até os pequenos animais passem por baixo sem serem perturbados. A estrutura foi pensada pra conservar a dinâmica natural do solo alagadiço.

O percurso tem cerca de 900 metros e, dependendo da época do ano, muda completamente. Na seca, o chão racha. Na cheia, vira espelho d’água. Em qualquer estação, é um laboratório de observação.

A trilha termina num mirante de 10 metros de altura, com vista pra Serra da Bodoquena. E ali, entendi por que tantos pesquisadores escolhem esse lugar como ponto de estudo: é um dos poucos trechos onde se vê a transição real entre Cerrado, Pantanal e Mata Atlântica ao mesmo tempo.

A dica é ir com guia. Eles sabem onde estão os ninhos, onde passou onça, o que é barulho de ave ou de mamífero. E vá com calma — porque ali, cada passo guarda um segredo.

Quando a fazenda é mais que hospedagem: viver o Pantanal além do roteiro

Viajar pro Pantanal é também aceitar uma outra ideia de conforto. Não aquele que vem de luxo — mas o que vem de pertencimento. De sentir que o lugar te aceita, te acomoda, te acolhe. E pra isso, estar numa pousada que é também uma fazenda fez toda a diferença.

Não foi sobre estrutura grandiosa, nem sobre amenities no banheiro. Foi sobre saber que o leite do café da manhã vem direto da ordenha. Que a cozinheira sabe seu nome. Que o menino que limpa os peixes também cuida dos cavalos. Que o guia colhe a salsinha da horta antes do almoço.

Ali, tudo faz parte de tudo. E isso muda o jeito que a gente vive o lugar.

Os dias que começavam com bicho e terminavam com história

As manhãs começavam cedo — não porque o relógio mandava, mas porque o som da arara era mais potente que qualquer despertador. Tomar café ali era quase uma cerimônia: café coado no pano, pão de queijo ainda quente, bolo de milho firme, frutas cortadas sem frescura. Um dia tinha mangaba. No outro, butiá. O suco sempre era surpresa — e sempre tinha gosto de quintal.

Uma das cozinheiras, Dona Neuza, me contou que não segue receita. “É o que tem no dia. Mas o carinho é o mesmo.” E era mesmo. A comida não era gourmetizada. Era cheia de saber. Saber de roça, de tradição, de cuidado. Um dia comi uma mojica de pintado tão boa que me deu vontade de ficar mais dois dias só pra repetir. Em outro, um arroz carreteiro com sabor de defumado, feito com carne de sol e lenha acesa desde cedo.

Entre uma refeição e outra, havia rede. Varanda. Sombra. Um cavalo solto comendo capim no quintal. Um tucano que pousava na cerca de madeira sempre no mesmo horário, como se soubesse que era o intervalo do almoço.

As pausas como parte da experiência

E aí entra um ponto importante: os intervalos entre os passeios não são “tempo livre”. Eles são parte do roteiro — mesmo que ninguém escreva isso. É nesse tempo que o Pantanal te alcança de verdade. Porque é ali que o corpo desacelera, que o olhar afina, que você começa a perceber detalhes que antes passavam batido.

Num desses intervalos, fiquei sozinha no alpendre. O céu estava meio cinza, mas sem chuva. Uma senhora peneirava farinha num canto. Uma criança ajudava a varrer folhas secas. O som era de passos, de insetos, de fogão de lenha. Nada aconteceu, e foi ali que aconteceu tudo.

Comecei a anotar no caderno o que sentia. E pela primeira vez em muito tempo, escrevi sem intenção. Só escrevi.

Se for pra dar uma dica que você não vai encontrar em guias: leve um caderno. Mesmo que não escreva. Deixa ele ali. Ele vai te puxar pra dentro quando a cabeça quiser correr pra fora.

A noite que virou cena sem palco

Teve uma noite que terminou com roda de viola. Nada marcado. Nada programado. Um dos funcionários pegou o violão depois da janta e começou a cantar. Música antiga, daquelas que falam de bicho, de rio, de saudade. A fogueira estalava. Os mosquitos dançavam. E ninguém falava alto. Era como se o silêncio estivesse prestando atenção também.

Nessa noite, o Pantanal me pareceu mais que paisagem. Me pareceu gente.

Gente que cozinha com alma. Gente que canta sem microfone. Gente que sabe o nome das aves só pelo canto.

E foi ali, sem fazer esforço, que eu me senti parte daquilo tudo. Não como turista. Mas como alguém que foi recebida.

Bonito: águas que revelam o que há de mais claro no Brasil

Sair do Pantanal em direção a Bonito foi como mudar de ritmo sem mudar de essência. A estrada entre os dois destinos dura cerca de quatro a cinco horas de carro, dependendo do ponto de partida. No meu caso, a viagem começou bem cedo, saindo de uma pousada próxima à Transpantaneira, com destino ao município de Bonito, no coração da Serra da Bodoquena.

É uma travessia silenciosa, dessas que convidam à introspecção. Aos poucos, o cenário troca a vastidão alagada por serras que se adensam no horizonte. Os animais soltos à beira da estrada vão dando lugar a matas fechadas, placas de turismo e um movimento diferente de gente — mais carros, mais pousadas, mais estrutura.

Se no Pantanal a natureza parece sussurrar pra quem sabe ouvir, em Bonito ela ganha um palco de vidro. Tudo ali é exuberante, organizado, impressionante. Mas ainda assim, consegue tocar quem chega com disposição pra ver além da superfície.

Cheguei com a cabeça cheia do barro das estradas pantaneiras e, sem perceber, fui sendo lavada — por águas cristalinas, por experiências que me colocaram dentro da paisagem, não só diante dela.

A partir daqui, te conto o que vivi em Bonito. Os passeios que mais fizeram sentido. As águas que mais disseram sem palavras. E os sabores que me lembraram que, mesmo cercada de turistas, é possível encontrar o que é nosso — de verdade.

Bonito em essência: natureza como espetáculo calmo

Bonito parece ter descoberto um segredo que o resto do Brasil ainda não entendeu completamente: a natureza, quando bem cuidada, vira experiência. E não é preciso forçar nada.

O que me chamou atenção desde o início foi a forma como tudo ali é planejado pra preservar — não pra explorar. Cada passeio tem controle de número de visitantes, guias treinados, regras de conduta e uma logística que, apesar de parecer rígida à primeira vista, existe justamente pra manter o que é bonito… bonito mesmo.

Não é um destino de improviso. Os passeios precisam ser agendados com antecedência, e muitas vezes é necessário comprar os vouchers através de agências locais autorizadas. Mas vale cada detalhe, porque cada lugar visitado entrega uma forma diferente de mergulho — seja literal ou simbólico.

A seguir, te conto o que vivi em cada uma dessas experiências. Não como roteiro ideal, mas como memória possível.

Flutuação no Rio da Prata: um aquário em movimento

Entre o Rio Sucuri e o Rio da Prata, optei pelo segundo. A estrutura é impecável, a condução é feita com extremo respeito à natureza e, o mais importante: a flutuação é longa o suficiente pra você sair do automático e entrar, de verdade, na experiência.

A trilha inicial já impressiona. São cerca de 50 minutos caminhando por mata ciliar, com paradas que o guia aproveita pra mostrar árvores típicas, falar dos ciclos da região e, em alguns trechos, apontar ninhos ou pegadas.

A flutuação começa na nascente do rio Olho d’Água. A água é tão transparente que, mesmo de fora, dá pra ver os peixes cruzando o fundo com calma. A roupa de neoprene mantém o corpo confortável e o snorkel permite observar tudo sem esforço. Cardumes de piraputangas, dourados, pequenos cascudos, plantas submersas que dançam com a correnteza — é literalmente um mundo novo sob os pés. A água tem temperatura estável e a leveza da descida permite que você relaxe e apenas siga.

O trecho da flutuação dura cerca de 2h e, mesmo com grupos, tudo é feito com muito silêncio e distanciamento. Ao final, um almoço pantaneiro completo é servido — arroz com pequi, pacu frito, farofa molhada, doce de leite feito ali. Nada gourmetizado demais. Só comida com alma.

Lagoa Misteriosa: onde o fundo não tem fim

Fazer o mergulho de batismo na Lagoa Misteriosa foi, sem dúvida, um dos pontos altos da viagem. A trilha até lá é leve e bem estruturada. Mas a sensação começa de verdade quando você termina de descer os 179 degraus até a borda da lagoa — uma cratera natural com água de um azul quase hipnótico.

O visual já impacta. Mas quando você mergulha (e eu nunca tinha feito antes), tudo muda de escala. O instrutor passa as instruções de forma tranquila, e o mergulho é assistido o tempo todo. Não é preciso experiência — só vontade. Com cilindro e roupa completa, você vai até uns 8 metros de profundidade. E é um mundo de silêncios, rochas que parecem esculturas e uma água que parece não ter fim.

A lagoa é tão profunda que nem os mergulhadores profissionais sabem exatamente o quanto. E, diferente de outros passeios, aqui não há vida marinha visível. Mas é justamente essa ausência que torna a experiência tão única: o foco é no vazio, na luz que entra em feixes, no som abafado. A paisagem é o próprio mistério.

Estância Mimosa: cachoeiras de verdade, sem fila pra selfie

Eu confesso que fui pra Estância Mimosa achando que seria só mais uma trilha com cachoeiras. Mas me enganei bonito.

A trilha tem cerca de 3 km e é feita em grupo pequeno, sempre acompanhada por guia local que conhece não só o nome das plantas e animais, mas também as histórias do lugar. No caminho, passamos por nove cachoeiras, cada uma com uma formação diferente. Algumas caem direto em poços fundos e transparentes, outras formam escorregadores naturais, outras só criam aquele véu fino de água sobre a pedra quente.

O mais surpreendente foi que, mesmo com estrutura (decks, escadas de madeira, boias), a sensação é de natureza bruta. A vegetação é densa, o som de água corre o tempo todo e o número controlado de visitantes faz com que você consiga aproveitar com calma — sem precisar disputar espaço.

Duas paradas me marcaram: uma com uma queda mais forte, onde a água batia no ombro como massagem (só que natural), e outra onde simplesmente boiei, em silêncio, sentindo a água morna escorrer no rosto.

Depois da trilha, o almoço servido na sede da fazenda foi um capítulo à parte. Comida de verdade: arroz fresquinho, feijão, salada simples, carne na chapa e um doce de mamão verde com queijo que parecia receita de vó.

Abismo Anhumas: experiência rara (e que precisa ser planejada com calma)

Esse não é um passeio que você decide em cima da hora — e isso já diz muito sobre a experiência. O Abismo Anhumas é um dos lugares mais incríveis (e extremos) de Bonito, e exige uma preparação que vai além da expectativa. Para descer até o interior da caverna, são 72 metros de rapel vertical — e sim, você precisa agendar com antecedência, fazer um treinamento técnico no dia anterior, passar por avaliação física, e confirmar o passeio só após ser aprovado.

Eu me organizei ainda no planejamento da viagem. Sabia que era o tipo de lugar que não dá pra improvisar — e ainda bem que fiz isso.

A descida é feita em duplas, com equipamento próprio e acompanhamento técnico. No início, dá aquele frio na barriga, claro. Mas conforme a luz entra pela fenda estreita e a caverna começa a se revelar, tudo muda. Lá embaixo, o espaço se abre em uma sala imensa, com estalactites gigantes, rochas submersas e um lago cristalino de mais de 80 metros de profundidade.

Dentro da água, fiz a flutuação, que é completamente diferente de qualquer outra em Bonito. Não tem peixes. Não tem vida aparente. É só você, a água gelada, o eco da caverna e as formações minerais refletindo no espelho azul. A sensação é de estar dentro de uma escultura viva — onde o silêncio é o guia.

Tudo lá é grandioso, mas feito com muita segurança. O número de visitantes por dia é limitado e os guias são extremamente cuidadosos. E mesmo com toda a estrutura, o lugar preserva aquele clima de segredo. Uma espécie de templo natural que só te deixa entrar se você estiver disposta a se preparar — por dentro e por fora.

Se você tem vontade de viver algo realmente fora do comum, coloque o Abismo Anhumas no seu roteiro. Mas não deixe pra decidir em cima da hora. Essa é uma experiência que exige compromisso, logística e fôlego — e te recompensa com uma memória que não se apaga.

Onde a terra também alimenta: refeições, receitas e afetos

Uma das maiores surpresas dessa viagem — e talvez uma das mais subestimadas — foi a comida. Não no sentido gourmet, nem turístico. Mas no jeito como ela aparece: feita com o que tem, servida com calma, com gosto de casa e cheiro de quintal molhado.

Em Bonito, principalmente nas fazendas que recebem visitantes para os passeios, a comida é parte essencial da experiência. Depois de horas na água, na trilha, na mata, é como se o corpo pedisse mais do que sustento. E ele recebe: panelas grandes, cheias, no fogão a lenha, com aquela fumaça que já abre o apetite antes do prato chegar.

Na Estância Mimosa, por exemplo, almocei depois de uma manhã inteira de cachoeiras. Cheguei ainda molhada, sentando devagar, com a roupa grudando no corpo e o rosto quente do sol. E ali, na varanda da fazenda, encontrei a mesa posta com tudo o que uma boa comida de interior deve ter: arroz soltinho, feijão ralo e saboroso, salada cortada na hora, peixe fresco com crosta dourada, farofa molhada com banana, abóbora refogada, mandioca derretendo. Simples. Sincero. Inesquecível.

E o melhor? Ninguém vinha perguntar se estava bom. Porque estava. E era óbvio. O sabor vinha de onde sempre deveria vir: do tempo, da terra, da tradição. A cozinheira — que vi mexendo a panela enquanto esperávamos — parecia fazer tudo de ouvido, como quem repete uma música antiga sem nunca ter lido a letra.

Em outro dia, provei o arroz com pequi. Fruto forte, cheio de personalidade. Teve quem estranhasse o gosto. Eu amei. Era como se o prato me lembrasse que nem tudo precisa agradar todo mundo pra ser bom de verdade.

Nos doces, o mesmo encanto: doce de leite morno, goiabada feita ali mesmo, compota de mamão verde, bolo de mandioca. Não servidos como sobremesa chique, mas como parte da conversa depois da refeição, com café preto passado no coador de pano e silêncio bom na varanda.

Comer nessas fazendas é quase um ato de reconexão. Não tem cardápio, não tem escolha. E, por isso mesmo, tem tudo o que importa: a comida vem como vem a vida no campo — do jeito que deu, do jeito que tinha, do jeito que ficou melhor.

E é curioso perceber como isso muda o jeito que a gente se alimenta. A gente desacelera. Mastiga de verdade. Fica mais presente. E talvez, por isso mesmo, essa comida — mais do que alimentar o corpo — alimenta a viagem inteira.

Quando a viagem vira espelho: o que aprendi entre um destino e outro

Entre o silêncio úmido do Pantanal e as águas transparentes de Bonito, eu percebi que essa viagem estava me mostrando mais do que paisagem. Estava me oferecendo contraste — e, com ele, entendimento.

No Pantanal, tudo se move devagar. O tempo é outro. A gente aprende a esperar, a observar, a não controlar nada. O corpo desacelera por necessidade, e a mente começa a entender que não é ela quem dita o ritmo. É o som dos pássaros, o calor do dia, a curva do rio, a presença de algo que você nem vê, mas sente. É natureza com densidade. Com volume baixo, mas significado alto.

Já em Bonito, tudo brilha. A água é tão clara que parece impossível. A experiência é visual, tátil, quase mágica. É como se o Brasil abrisse uma janela secreta e dissesse: olha o que eu escondo aqui. E por mais que seja organizado, com estrutura e logística, ainda assim é encantador. Porque o encantamento está na forma como a natureza aparece — não com força, mas com beleza.

Viajar por esses dois lugares em sequência me fez entender que o Brasil tem muitas formas de tocar a gente. O Pantanal te chama pra dentro. Bonito te convida pra fora. Um te ensina a ver no escuro. O outro, a enxergar a luz.

E, no fundo, o que mais me marcou foi perceber que, ao mudar de paisagem, quem muda de verdade somos nós. E talvez esse seja o maior presente de uma viagem bem feita: ela não termina quando você volta pra casa. Ela continua dentro da gente, mudando o que a gente enxerga quando olha pro mundo — e pra si mesma.

Se você quiser viver algo assim

Se você leu até aqui e sentiu vontade de viver algo parecido, vale saber que essa jornada entre Pantanal e Bonito é possível, realista e transformadora — desde que feita com calma e com alguma organização.

O melhor período pra ir é durante a estação seca, entre junho e setembro. Nesse intervalo, as estradas estão mais acessíveis, a vida animal no Pantanal é mais visível e os rios de Bonito estão com a água mais cristalina. É a época em que a natureza parece se mostrar com mais nitidez.

O deslocamento entre Pantanal (na região de Miranda ou Aquidauana) e Bonito é feito por estrada. De carro, são cerca de 3 a 4 horas, dependendo da pousada onde você estiver. Vale combinar o transporte com antecedência — muitas hospedagens oferecem ou indicam motoristas de confiança. Outra opção é alugar um carro, mas atenção: o trecho da Transpantaneira exige veículo alto e cuidado extra em períodos chuvosos.

Sobre o tempo ideal: mínimo 4 noites em cada lugar, mas se puder, fique cinco. No Pantanal, os passeios seguem o ritmo da natureza e nem sempre o que está no papel acontece. Em Bonito, muitas atividades exigem reserva antecipada, então planeje os principais com alguma antecedência — especialmente Rio da Prata, Gruta do Lago Azul, Estância Mimosa e a Lagoa Misteriosa, que funciona só na estação seca.

Também recomendo reservar hospedagens com pensão completa no Pantanal — isso faz diferença no descanso e no ritmo dos dias. Já em Bonito, como há mais estrutura urbana, dá pra experimentar os restaurantes da cidade à noite com tranquilidade.

Essa combinação de destinos funciona não só pela beleza natural, mas porque oferece uma visão rara de um Brasil profundo, vivo, generoso. E se você for com disposição pra ver mais do que o óbvio, vai voltar com a mala cheia de algo que não se compra — só se vive.

No tempo certo

Cada viagem traz uma forma diferente de mudança. Mas algumas não mudam só o jeito de viajar — mudam o jeito de estar. De olhar pra fora e, principalmente, de olhar pra dentro.

O Pantanal me ensinou sobre ritmo. Sobre não apressar o que já tem seu tempo. Sobre escutar mais do que falar, ver mais do que registrar. Foi ali que percebi que presença não é só estar num lugar — é conseguir se esvaziar das urgências pra caber no agora.

Já Bonito me lembrou que encantamento também pode ser leve. Que o Brasil guarda cenários absurdos de beleza sem precisar cruzar oceanos. Que há mergulhos que começam com máscara e snorkel — e outros que acontecem sem equipamento nenhum, só com disposição pra sentir.

Entre um destino e outro, o que mais me marcou não foram os passeios em si. Mas o que eles provocaram: pausas que eu não fazia há muito tempo. Descobertas que vinham no silêncio, nas conversas com quem vive ali, no cheiro de pequi no fogão a lenha, na flutuação que me deixou completamente entregue.

Viajar por esses dois lugares foi, no fim, um jeito de lembrar que nem tudo precisa ser grandioso pra ser inesquecível. E que há beleza nos contrastes — do barulho pro silêncio, da aventura pra contemplação, da estrada pro rio.

Se esse texto te deu vontade de ir, planeje com calma, no seu tempo.
E se quiser mais caminhos assim — reais, possíveis, bonitos — te espero nos próximos artigos.

Tem muito mundo ainda pra partilhar.

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